O homem caminhava num passo cadenciado mas um pouco arrastado, com o tipo de segurança inconsciente de quem não tem pressa mas tem destino certo. Levava na mão direita um saco de supermercado, mas o peso não parecia ser suficiente para justificar os ombros curvados que lhe davam, à distância, um ar mais velho do que realmente era. Demorara-se a escolher a pizza congelada, comparando ingredientes, frases publicitárias, modos de preparação, como se isso fosse importasse, como se não estivesse apenas a cumprir a tarefa rotineira de ser ele, naquele dia, a arranjar o jantar, qualquer coisa que enchesse o estômago. Pareceu subitamente dar-se conta desse requinte desnecessário e escolheu apenas a embalagem com as cores mais berrantes. Saiu e ficou um pouco surpreso por já ter anoitecido. Caminhava agora já perto de casa, à luz dos candeeiros, ainda verão, sem vento, sozinho no passeio largo, podia por momentos deixar de reconhecer os lugares de sempre e julgar-se noutro sítio qualquer. Fazia este truque algumas vezes, mas nunca tinha conseguido imaginar-se num lugar onde não tivesse já estado antes. A luz que saía debaixo da porta da casa dos vizinhos novos, que ainda não tinha conhecido mas que sabia terem-se mudado para o princípio do quarteirão, fê-lo parar. Percebeu de seguida que não era a luz, mas era a luz e a música que também saía daquela porta, tudo junto parecia tecer um tapete de convite que o fez parar, disposto a retardar um pouco o caminho, só um pouco, para apreciar um momento novo na rua habitual. Não se ouviam vozes, nem gatos, nem barulho de loiça, nem arrastar de cadeiras, nem folhas de jornal, nem sons de televisão, só a música que fazia a nesga de luz balançar, mudar de cor, aumentar e diminuir de intensidade. Pensou que isso era apenas uma ilusão, uma sugestão de sentidos e de desejos, que a luz só podia estar quieta, era a música que o embalava quase sem dar por isso e o enganava daquela maneira. Despertou repentinamente, com um ligeiro abano de cabeça, como que para focar a vista e os ouvidos. Quanto tempo tinha passado? Tinha uma perna dormente e a embalagem de pizza já pingava, teria que ter estado ali, de pé, especado, muito tempo. Como é que não dera por isso? Já não havia luz por baixo daquela porta, nem música, nem os outros sons que antes já não havia. Nada se ouvia, nem motores ao longe, nem pássaros nas árvores, nem o crepitar dos fios eléctricos. Que raio fazia ele ali, parado no meio do passeio? Tinha-se levantado um pouco de vento, mas a noite ainda estava quente. O homem caminhava sem olhar para o chão. Passara à porta de casa sem sequer hesitar na passada. Um pouco mais à frente atirou para junto de uma parede o saco de supermercado. Parou uns segundos, respirou fundo, abriu ligeiramente os braços, as palmas das mãos viradas para a frente, e recomeçou a andar. De cada vez que os faróis de um carro que passava o iluminavam, o homem parecia um pouco maior, ou com tons diferentes no cabelo, ou com um ritmo novo no andar.
O homem caminhava num passo cadenciado mas um pouco arrastado, com o tipo de segurança inconsciente de quem não tem pressa mas tem destino certo. Levava na mão direita um saco de supermercado, mas o peso não parecia ser suficiente para justificar os ombros curvados que lhe davam, à distância, um ar mais velho do que realmente era. Demorara-se a escolher a pizza congelada, comparando ingredientes, frases publicitárias, modos de preparação, como se isso fosse importasse, como se não estivesse apenas a cumprir a tarefa rotineira de ser ele, naquele dia, a arranjar o jantar, qualquer coisa que enchesse o estômago.
ResponderEliminarPareceu subitamente dar-se conta desse requinte desnecessário e escolheu apenas a embalagem com as cores mais berrantes. Saiu e ficou um pouco surpreso por já ter anoitecido. Caminhava agora já perto de casa, à luz dos candeeiros, ainda verão, sem vento, sozinho no passeio largo, podia por momentos deixar de reconhecer os lugares de sempre e julgar-se noutro sítio qualquer. Fazia este truque algumas vezes, mas nunca tinha conseguido imaginar-se num lugar onde não tivesse já estado antes.
A luz que saía debaixo da porta da casa dos vizinhos novos, que ainda não tinha conhecido mas que sabia terem-se mudado para o princípio do quarteirão, fê-lo parar. Percebeu de seguida que não era a luz, mas era a luz e a música que também saía daquela porta, tudo junto parecia tecer um tapete de convite que o fez parar, disposto a retardar um pouco o caminho, só um pouco, para apreciar um momento novo na rua habitual. Não se ouviam vozes, nem gatos, nem barulho de loiça, nem arrastar de cadeiras, nem folhas de jornal, nem sons de televisão, só a música que fazia a nesga de luz balançar, mudar de cor, aumentar e diminuir de intensidade. Pensou que isso era apenas uma ilusão, uma sugestão de sentidos e de desejos, que a luz só podia estar quieta, era a música que o embalava quase sem dar por isso e o enganava daquela maneira.
Despertou repentinamente, com um ligeiro abano de cabeça, como que para focar a vista e os ouvidos. Quanto tempo tinha passado? Tinha uma perna dormente e a embalagem de pizza já pingava, teria que ter estado ali, de pé, especado, muito tempo. Como é que não dera por isso? Já não havia luz por baixo daquela porta, nem música, nem os outros sons que antes já não havia. Nada se ouvia, nem motores ao longe, nem pássaros nas árvores, nem o crepitar dos fios eléctricos. Que raio fazia ele ali, parado no meio do passeio?
Tinha-se levantado um pouco de vento, mas a noite ainda estava quente. O homem caminhava sem olhar para o chão. Passara à porta de casa sem sequer hesitar na passada. Um pouco mais à frente atirou para junto de uma parede o saco de supermercado. Parou uns segundos, respirou fundo, abriu ligeiramente os braços, as palmas das mãos viradas para a frente, e recomeçou a andar. De cada vez que os faróis de um carro que passava o iluminavam, o homem parecia um pouco maior, ou com tons diferentes no cabelo, ou com um ritmo novo no andar.
http://www.npr.org/event/music/157190242/the-walkmen-tiny-desk-concert?autoplay=true
bolas, miúdo, o que uma moeda pode fazer por mim! obrigada. marcamos encontro para 4 de novembro...? eles vêm aí.
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